Realismo: Representando a dignidade e a democracia

04/01/2015 23:42 Atualizado: 08/01/2015 12:40

Jean-Jacques Rousseau afirmou no início de seu primeiro trabalho de referência “O Contrato Social”: “O homem nasceu livre e por toda a parte vive acorrentado”. A obra de Rousseau focou em um dos conceitos mais essenciais responsáveis por tirar o mundo ocidental do “medievalismo” e proteger as pessoas de serem vulneráveis aos caprichos de um déspota ou de um rei do tipo filósofo, inclusive daqueles que só eram realmente responsáveis por suas próprias sensibilidades, validadas e legitimadas pelo “direito divino”.

O mundo ocidental transformou-se, de um mundo cheio de editais da “soberania”, em um mundo governado por “estados soberanos”. Termos como “vontade geral”, “contrato social” e “governo do povo, pelo povo e para o povo” foram disseminados por todo o mundo recentemente “livre”.

Leia também:
Realismo: portador da dignidade humana
Realismo: Entendendo o que é ‘relevante’
Realismo: triunfando através das eras

Essas ideias revolucionárias tornaram-se conceitos cujos significados e compreensões eram cada vez mais incorporados nas classes cultas, espalhando-se rapidamente para os trabalhadores nos campos e operários de fábricas e estaleiros. Todos participavam dos benefícios de uma sociedade recém livre e democrática, e as origens do século 18 lideraram a codificação do século 19.

Isso começou primeiro de maneira restrita, apenas com proprietários de terra que votavam na Constituição original dos EUA, e então, foi ficando cada vez mais abrangente. No tempo em que o século 20 terminou de lidar com as duas guerras mundiais, a Grande Depressão, e inúmeros outros horrores, vimos a evolução vinda de uma sociedade agrícola para uma industrializada, e depois, para uma sociedade tecnologicamente avançada como a de hoje.

Então, são essas crenças centrais e os avanços do Iluminismo, com suas ideias e conceitos, que representam o crucial para compreender o contexto em que os artistas do século 19 viveram. Eles estavam, na verdade, se dirigindo ao coração do pensamento Iluminista.

Bouguereau pintava meninas camponesas com uma dignidade solene, e com uma beleza serena e reverente. Uma de suas obras mostra uma forte, porém bela menina camponesa segurando um bastão e olhando o espectador diretamente e descaradamente no olho. Ela está de pé em seu terreno, por assim dizer.

Em outro grande trabalho, uma mãe cigana em tamanho real segura sua filha, e ambas estão no topo de uma montanha, olhando para o espectador. Seu olhar é também direto, mas acolhedor.  Nesta pintura, Bouguereau eleva essas ciganas dando a elas silhuetas que refletem contra um vasto céu e uma baixa linha de horizonte. Ao analisar a obra, podemos perceber que olhamos de baixo para elas. Veja a foto abaixo:

Pintura de William Bouguereau (Cortesia do Art Renewal Center)
Pintura de William Bouguereau (Cortesia do Art Renewal Center)

Suas expressões gentis e acolhedoras implicam na aceitação delas a nós; o espectador é convidado a retornar esta demonstração de respeito, que só pode ser devidamente reproduzida se também aceitarmos as personagens, independente do baixo status que carregam. A verdade e a realidade de suas origens, uma vez negativa, agora as eleva aos céus.

No século 19, toda pessoa que fizesse alguma e qualquer atividade era considerada digna de assuntos e temas para os artistas abordarem. Os temas incluíam pinturas de mulheres pobres e sem-teto, jogadas no frio, ou de crianças que trabalhavam até de noite, suportando duradouras de 16 horas de trabalho por dia.

Havia cenas de casamento, filhos e vida familiar, cenas de escolas, tribunais, hospitais e indústria, parques e montanhas e inúmeros outros temas.

Por exemplo, um novo tema popular era do clero dos hipócritas, que pregavam a doação de posses, mas moravam em apartamentos luxuosos, cheios de arte, antiguidade e servos pessoais. Isso era revolucionário para os artistas.

Quando Vibert, Brunery, ou Croegaert satirizaram o clero e pintaram cardeais em ambientes luxuosos, jogando cartas com jovens socialites, ou contratando serviços de uma cartomante, eles estavam dizendo que o clero também era humano, e vulnerável às mesmas fraquezas e fragilidades que as outras pessoas. Mas, além disso, satirizar o clero representava nossa liberdade de expressão recém-descoberta.

Um professor modernista uma vez me disse: “Quão vazio e bobo é mostrar cardeais em poses tolas como essas”. Seu preconceito o cegou até mesmo para descobrir o que Vibert havia feito, quais regras de conduta ele havia quebrado em relação aos primeiros governantes da sociedade.

Fomos instruídos a elevar os artistas por quebrar regras e convenções de perspectiva ou por sabotar o desenho realista, ou por se atrever a não seguir os preceitos anteriores. Mas os artistas acadêmicos que estiveram na linha de frente ajudando a todos nós a conseguirmos nossa liberdade e nossos direitos, também estavam ajudando a criar um clima onde seria possível considerar a quebra das regras artísticas. Nos séculos passados, um artista teria tido sua cabeça cortada por satirizar cardeais desta forma.

Desde expor os males sociais a retratar o valor e a igualdade de todas as pessoas, também era mais um meio passo para explorar o interior da vida pessoal dos indivíduos e para valorizar e elevar as expectativas, fantasias e sonhos da humanidade. Para os artistas e escritores acadêmicos do século 19, a humanidade era o que contava, assim como tudo o que nos torna humanos, como nos vemos e como vemos o mundo. A humanidade foi glorificada, e isso inclui pessoas de todos os tipos e formas, de todas as nacionalidades e cores, e de todas as profissões e vocações.

Esta é a Parte 9 de uma série de 11 partes do discurso proferido por Frederick Ross, no dia 07 de fevereiro de 2014, apresentado no Artists Keynote Address to the Connecticut Society of Portrait Artists. Frederick Ross é presidente e fundador do Art Renewal Center (www.artrenewal.org)

Leia também as outras partes do discurso. Clique aqui!