Por que o governo?

23/01/2014 15:43 Atualizado: 23/01/2014 16:51

Entre os cientistas sociais modernos há devotos de uma economia centralmente controlada que considerariam tendencioso o título desta seção. Eles entendem que é o mercado, e não o governo, que deve ser justificado. Eu deveria, portanto, dizer imediatamente que eu proponho demonstrar que parte da sociedade deve ser deixada para o mercado, e parte, tratada pelo governo. Uma vez que este trabalho trata da economia do governo em vez da do mercado, parece sensato explicar por que algumas funções devem ser controladas pelo governo ao invés de por que algumas devem ser controladas pelo mercado; mas isso é meramente uma questão de estilo e não de substância. Leitores que desejem presumir que o governo é a regra e o mercado deve ser adotado somente quando há razões especiais para isso, perceberão que o raciocínio se adapta a esta abordagem. [1]

O advento das “externalidades

David Hume começou a discussão das “externalidades”. Como exemplo, ele usava um pasto [2] que estava mal drenado e cujo valor poderia ser aumentado com a drenagem em muito mais do que o custo. Se o pasto pertence a um homem, não há problema. Ele o drena e recebe o lucro.

Se acontecer de o pasto se situar sobre a propriedade de duas pessoas, elas podem fazer um acordo entre si sobre a divisão do custo e do lucro da drenagem. Se várias pessoas possuem partes do pasto, o acordo se torna extremamente difícil. Cada pessoa está ciente de que, se ela não contribuir para a drenagem, sua abstenção reduz muito pouco os recursos disponíveis. Depois, ele receberá sua parte do benefício sem custo. Os indivíduos têm, portanto, reservas sobre se empenhar numa negociação sobre sua participação no projeto e, assim, nenhum acordo poderá ser alcançado e o pasto permanecerá sem ser drenado.

Há apenas 20 pessoas ou um pouco mais no pasto de Hume; nas atividades do governo pode haver milhões. Até a Segunda Guerra Mundial, Londres era famosa por seus densos nevoeiros e por doenças pulmonares. A causa era a fumaça gerada pela queima do carvão. Se todos passassem a utilizar outros combustíveis, todos se beneficiariam; mas ninguém se beneficiaria com resultados aparentes ao tomar essa atitude individualmente, porque a redução da quantidade total da fumaça do carvão lançada na atmosfera quando uma única pessoa passa a utilizar gás ou eletricidade era insignificante. Um acordo privado onde todos parariam de queimar carvão seria, portanto, impossível de se realizar.

Hume recomendava, nessas circunstâncias, o uso do governo. [3] Mesmo que as pessoas não pudessem concordar entre si sobre quem deve dar uma determinada quantia em dinheiro para drenar o pasto e quem deve receber partes do lucro, eles poderiam ser capazes de concordar em deixar esta decisão ser tomada de uma forma mais ou menos automática ou por um agente considerado “imparcial”. O agente não teria um total conhecimento da situação dessas pessoas, e por isso suas decisões seriam, de certo modo, inferiores àquelas obtidas através de negociações se estas ocorressem perfeitamente.

A decisão de adotar um método coletivo não se dá porque se pensa que o resultado é algo superior, mas sim porque garante algum resultado. A coletividade pode coagir os indivíduos a abandonar suas estratégias de negociação privadas e a aceitar uma solução imposta, que, embora não seja perfeita, é melhor do que nada. Esse raciocínio é particularmente óbvio no problema da queima de carvão em Londres. Claramente, nada podia ser feito através de puras ações privadas; a única alternativa era uma solução coletiva através do governo. Deve-se observar, entretanto, que a solução governamental não era, em qualquer hipótese, perfeitamente adequada aos desejos das várias pessoas. Assim, havia ineficiência nesta solução, conquanto muito menor do que se o problema não fosse resolvido.

“Externalidades” e governo

Esses efeitos são chamados “externalidades”, em economia. Podemos ter um conjunto de instituições de propriedade tais que alguns dos efeitos da atividade (ou inatividade) de poucas pessoas estão aptos a cair sobre muitos. A fumaça da chaminé é um exemplo clássico. Nessas circunstâncias, as pessoas, normalmente, não podem negociar sobre os métodos e custos para diminuí-la, para drenar os pastos, ou para incontáveis outras coisas que o governo satisfaz. Eles, portanto, se voltam a um instrumento coletivo que exerce a função com alguma (embora não muito expressiva) eficiência.

Até agora, não há nada sobre o “interesse público” na análise. Algumas atividades governamentais (como uma força policial adequada) são tão benéficas que se pode, razoavelmente, se referir a elas como sendo “de interesse público”. Mas mesmo aqui, o “interesse público” é simplesmente a soma dos interesses privados. Eu preferiria não ser assaltado, assassinado ou ser vítima de estelionato, e eu presumo que o mesmo é verdade para o leitor. Esses desejos são tão “egoístas” quanto minha vontade de que meu salário suba.

Também não há razão para acreditar que o governo alcance uma solução perfeita. O número de casos em que os economistas discutiram que o mercado é imperfeito e, portanto recomendaram que o governo deveria lidar com o problema é muito alto. A. C. Pigou, economista inglês, e Paul Samuelson, economista americano, ambos cometeram esse erro. Eles presumiram que o governo alcança uma solução perfeita. [4] Ninguém acredita nisso, mas os economistas frequentemente recomendam a ação governamental simplesmente porque o mercado privado cria externalidades e, por isso, não é provável que funcione perfeitamente. Isso é claramente um engano; devemos comparar os prováveis erros de ambos no mundo real e usar a instituição que causará menos ineficiência, seja o governo ou o mercado.

Onde há grandes externalidades, nós preveríamos que o mercado privado não funcionaria bem. Isso é chamado “falha de mercado” na literatura técnico-econômica. Devemos, então, ponderar se o processo governamental fará melhor, ou, pelo menos, de forma menos imperfeita. Há uma lenda de um imperador romano que, uma vez consultado para julgar uma disputa entre dois cantores, ouviu apenas o primeiro e deu o prêmio para o segundo, presumindo que ele não poderia ser pior. Esse não é um procedimento de escolha ótimo. Devemos perguntar: quais são os defeitos na prática do processo governamental, comparado com os defeitos do mercado?

Defeitos do governo: bens públicos – tudo ou nada

Os defeitos (e as vantagens) da provisão governamental são discutidos mais tarde. Alguns podem ser tratados aqui. O primeiro defeito é simplesmente que o governo, por necessidade, compra uma única quantidade de qualquer “bem público”. [5] Quando eu compro algo no mercado privado, eu posso decidir quanto daquilo eu quero. Se me junto aos meus vizinhos para comprar um serviço público, eu tenho que aceitar a quantidade decidida pela regra da maioria (ou outra regra) no processo de decisão coletiva de uma democracia representativa.

Posso preferir pagar taxas um tanto maiores e ter uma força policial maior, com a concomitante queda da taxa criminal; você pode preferir uma taxa de imposto menor, uma menor força policial e uma taxa criminal mais alta. Se fosse possível comprar policiamento de forma eficiente no mercado privado [6] (não acredito que seja), nós poderíamos, cada um, ter nossa própria quantidade ótima. Se é necessário que seja comprado coletivamente, entretanto, teríamos que alcançar um compromisso, que poderia ser o seu ótimo, o meu ótimo, ou algo entre os dois; mas em qualquer caso nós não teríamos cada um o seu ótimo individual, como aconteceria se fizéssemos a compra no mercado privado.

Uma segunda desvantagem é que algumas pessoas simplesmente não gostam de uniformidade, sem consideração pela quantidade ou qualidade. Eles não desejariam receber a mesma quantidade ou qualidade de serviços que outras pessoas, mesmo que por coincidência acontecesse de elas serem as mesmas que eles escolheriam por si próprios. Isso pode ser um custo razoavelmente pequeno, mas não é desprezível.

Uma vez que a atividade governamental impõe custos nesse sentido, não se segue que não deveríamos usar o governo para nenhuma atividade. Há custos também no uso do processo de mercado. Devemos medir e comparar os custos em ambos e escolher a instituição que, para o propósito em questão, é a mais eficiente. Para tornar racional essa decisão, temos que considerar as externalidades ou os outros defeitos do mercado privado e as condições que conduzem à ineficiência na provisão governamental. Escutamos a ambos os cantores da ópera e escolhemos aquele que apresenta menos defeitos. Um engenheiro escolhendo entre um motor a diesel e uma turbina a vapor sabe que nenhuma das opções é perfeitamente eficiente e, para alguns propósitos, uma funciona melhor que a outra. Que nenhuma instituição é perfeita não é argumento para não se fazer uma escolha, mas é um argumento para um cálculo cuidadoso de todos os efeitos, bons e ruins. O objetivo da nova análise econômica da política é isso deixa esses cálculos mais fáceis, mais completos e mais precisos.

Trocando de escolha entre mercado e governo

Não há razão para que a escolha entre governo e mercado seja permanente ou imutável. Mudanças tecnológicas podem aumentar as externalidades onde elas costumavam ser baixas ou, talvez, tornar mais fácil para o governo produzir uma boa solução. Em ambos os casos, isso seria um argumento em favor da transferência de um serviço anteriormente oferecido pelo mercado para o governo. Por outro lado, uma queda acentuada nas externalidades ou um desdobramento que tornaria difícil para o governo tomar uma decisão ótima seriam, ambos, argumentos pela transferência de uma atividade do governo para o mercado privado. Num regime que funcione bem, as atividades que eram privadas cem anos atrás não o seriam necessariamente agora, e as atividades que eram conduzidas pelo governo cem anos atrás não o seriam necessariamente agora, exceto por coincidência.

Conforme o tamanho e o vigor geral da civilização humana crescem, há mais efeitos prejudiciais sobre o meio ambiente. Uma pequena comunidade cercada por um grande espaço aberto pode se permitir jogar todo seu lixo num córrego enquanto coleta toda sua água potável num ponto mais acima daquele em que os resíduos são lançados. Conforme a população cresce ao redor do córrego, esse procedimento se torna mais caro. Uma vez que os métodos do governo para lidar com esse problema não serão perfeitos, não é sensato introduzi-los até que a poluição se torne considerável. Consequentemente, alcançaríamos um estágio onde os custos potenciais de uma ação inepta do governo seriam menores do que os custos atuais da poluição. Aí, o controle governamental se tornaria preferível.

Sou um ávido leitor de ficção científica. Suponha que alguém invente um distribuidor de lixo familiar e industrial pequeno, compacto e barato, que converterá todo o lixo num fertilizante próprio para venda a um custo muito baixo. Uma vez que esse é um excelente sistema, as famílias e as indústrias começam a adotá-lo e a abandonar seus métodos tradicionais de eliminação do lixo. Após um tempo, a continuação da existência de uma ação governamental para coleta de lixo vai gerar mais custos para a sociedade do que a pequena poluição que seria lançada no córrego se ela fosse abolida. Nessa ocasião, a atividade deveria retornar ao mercado privado.

Minha forma de eliminação do lixo pode nunca ser produzida, mas o avanço tecnológico pode, com frequência, invocar um controle governamental reduzido. Imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, quando novas emissoras de televisão estavam sendo abertas nos Estados Unidos, havia uma forte probabilidade de que elas interfeririam umas com as outras; suas áreas de cobertura se sobrepunham na mesma onda. A instituição regulamentadora escolhida para lidar com o problema foi a Federal Communications Comission (FCC), que estava exercendo a mesma função para o rádio. Ela fez um péssimo trabalho de alocação e policiamento das ondas de TV. O resultado foi que os americanos têm muito menos opções de programas televisivos do que poderiam ter, e essa escolha foi deformada pelas ideias distorcidas da FCC sobre a programação de TV. Entretanto, enquanto muitos prefeririam uma melhor regulamentação [7], ninguém argumentou que a TV não deveria ser regulamentada.

Outra maneira de se propagar o sinal de TV é por cabo. Não há nenhuma razão para que ela seja regulamentada de forma nacional, mas a FCC de fato a regulamenta e não há dúvida de que isso retardou a taxa de crescimento da TV a cabo. A aplicação original da FCC para a alocação das ondas de TV era sensata, se não ótima. Com o desenvolvimento de nova tecnologia para o cabo, o mercado deveria ter substituído o governo. Infelizmente, nossas instituições ainda não foram adaptadas para as mudanças nas condições. E isso é em si — a resistência para diminuir a força do próprio governo, mesmo que tenha se tornada antiquada — um aspecto da economia da política.

Novamente: isso é apenas um exemplo. Há muitos serviços onde o governo é menos prejudicial que o mercado, e muitos em que o mercado é menos prejudicial que o governo. Devemos buscar uma combinação ótima equilibrando cuidadosamente os custos de um instrumento com os do outro.

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Notas:

[1] Em Londres, nos anos 1930, houve um debate entre os professores William Hutt e Abba Lerner sobre capitalismo versus socialismo. Hutt defendia que tudo devia ser feito pelo mercado, exceto as atividades que são administradas melhor pelo governo. Lerner defendia que tudo deve ser feito pelo governo, exceto as atividades que são administradas melhor pelo mercado. As abordagens vinham de extremos opostos, mas ambas apontavam praticamente as mesmas políticas no equilíbrio entre governo e mercado.

[2] HUME, David. A Treatise of Human Nature (1740), ed. L.A. Selby-Bigge. Oxford: Clarendon Press, 1960. p. 538.

[3] David Hume, ibidem.

[4] PIGOU, Arthur C. The Economics of Welfare. 4ª ed. Londres: Macmillan, 1938; SAMUELSON, Paul A. Economics: An Introductory Analysis. 3ª ed., Nova York: McGraw-Hill, 1955. pp 271-272.

[5] Uma mercadoria ou serviço que, se comprado em sociedade, estará necessariamente disponível para consumo por todos. O clássico exemplo é a força de defesa nacional, que não pode exatamente defender Smith sem também defender seu vizinho, Jones.

[6] [Em The Theft of Market, Hobart Paper 60, IEA, 1974, o dr. R. L. Carter defende que alguns serviços policiais poderiam ser comprados privadamente, por exemplo, o transporte de moeda e outros serviços de pessoal de segurança, e aconselhamento detalhado sobre prevenção do crime.]

[7] Outra técnica regulatória teria sido simplesmente vender as frequências de onda num mercado aberto.

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Este ensaio é o segundo capítulo de TULLOCK, G. The Vote Motive. Londres: Institute of Economic Affairs, 1976.

Gordon Tullock é economista, professor, e um dos principais formuladores da teoria da escolha pública

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre