A crise argentina e seus efeitos sobre o Brasil

09/02/2014 12:09 Atualizado: 09/02/2014 14:17

1. Comércio e divergências macroeconômicas no Mercosul

A Argentina sempre foi, historicamente, um grande parceiro econômico do Brasil, mais pelo lado do comércio do que por outros fluxos econômicos, embora, desde a criação do Mercosul e a partir da intensificação de diferentes acordos setoriais, as relações recíprocas tenham conhecido, nos anos 1990, expansão notável também pelo lado dos investimentos e dos demais fluxos ligados a serviços, cooperação científica e tecnológica, bem como alguns projetos conjuntos em áreas selecionadas.

Até os anos 1980, a Argentina sempre esteve entre os dez primeiros parceiros comerciais do Brasil, mesmo não alcançando os primeiros lugares. Com a aproximação pós-ditaduras militares em ambos os países, teve início o processo de integração, primeiro pelo Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE), de 1986, baseado em protocolos setoriais e comércio administrado, depois pelo Tratado de Integração de 1988, reduzindo tarifas e criando uma zona de livre comércio gradual até chegar a um mercado comum em dez anos, e finalmente, pela Ata de Buenos Aires, de julho de 1990, que estabeleceu o livre comércio e a união aduaneira num prazo de quatro anos e prometia um mercado comum, no formato intergovernamental a partir de 1º de janeiro de 1995. A Argentina despontou, então, entre os primeiros cinco parceiros.

O Mercado Comum do Sul (Mercosul), de 1991, nada mais é senão o mesmo acordo de mercado comum de 1990, estendido a dois novos parceiros, Paraguai e Uruguai, tornando quadrilateral, portanto, o que era apenas bilateral. Os fluxos de comércio intra-Mercosul cresceram significativamente nos primeiros nove anos de existência, não sem alterações de direção nos saldos bilaterais (de maneira algo errática em função das políticas cambiais), mas, a partir de 1999, veio a enfrentar crises de várias naturezas, das quais não parece ter se recuperado, mesmo com a retomada do crescimento de seus membros individualmente.

Com base nos instrumentos originais, – Tratado de Assunção de 1991, Protocolo de Ouro Preto de 1994, muitas resoluções do Conselho e normas do Grupo Mercado Comum e Comissão de Comércio – o comércio se expandiu de maneira exponencial entre os quatro parceiros entre 1991 e 1999, criando na Argentina aquilo que veio a ser conhecido como “Brasil dependência”, tendo o Brasil se tornado seu primeiro parceiro em ambos os fluxos de comércio. No caso do Brasil, o Mercosul, no qual o comércio com a Argentina ocupa a maior parte dos fluxos, passou de porção menor do comércio exterior total brasileiro (apenas 4% em 1991) até alcançar fração respeitável, cerca de 15% no seu momento de maior relevância, no final dos anos 1990; a Argentina oscilou, então, entre a segunda ou a terceira posição mais relevante nos mercados exportadores brasileiros – logo depois dos Estados Unidos e à frente de vários parceiros tradicionais europeus. Ocorreu muita oscilação no comércio bilateral e na repartição dos saldos, pois ambos os países passaram por crises cambiais recorrentes, sobressaltos financeiros ou descompassos monetários em momentos diversos, sendo o ano de 1999 um divisor importante, não apenas economicamente, mas também politicamente. Pode-se dizer que a partir daí o Mercosul, mesmo continuando a ser importante comercialmente para o Brasil (e certamente para a Argentina), perdeu espaço nos fluxos globais do Brasil (reduzindo-se a menos de 10% do comércio exterior global depois disso).

As razões da perda de importância relativa são muitas, mas elas têm a ver, basicamente, com divergências nas políticas econômicas dos dois países, que nunca foram muito alinhadas, mas cujas diferenças eram minimizadas por ações mais ou menos convergentes das lideranças políticas nos dois países no decorrer da primeira década. Na verdade, a divergência macroeconômica entre Brasil e Argentina existe desde a origem do Mercosul, uma vez que, quando do seu nascimento, em 1991, a Argentina já tinha adotado o regime cambial da paridade absoluta entre o peso e o dólar, o que estabilizou temporariamente sua economia, depois das crises de hiperinflação do final dos anos 1980 e início dos 1990. Ainda assim, o novo regime foi valorizando paulatinamente o peso e, já em meados da década, a Argentina começou a enfrentar problemas de competitividade nas suas exportações, contornados por artifícios protecionistas e recurso a empréstimos externos, para compensar saldos deficitários nas transações correntes. O único país com o qual a Argentina mantinha saldo favorável, na segunda metade da década, era justamente o Brasil, por força de comércio administrado (automóveis, trigo, petróleo) e da valorização do real na primeira fase do Plano Real.

Quando da crise cambial no Brasil, em setembro de 1998, e da desvalorização e adoção do regime de câmbio flutuante, a partir de fevereiro-março de 1999, a Argentina perdeu seu último grande provedor de divisas, e o regime de conversibilidade entrou em crise terminal (também agravada pelos déficits orçamentários, excessos de emissão de moeda e de endividamento externo). Entre 2001 e 2002, a Argentina experimentou uma das mais importantes crises de sua história recorrente e repetida de crises econômicas, o que afetou gravemente o comércio bilateral e no âmbito do Mercosul. Chegou-se inclusive a falar de dolarização completa, mas, em função da maxidesvalorização então adotada e da decretação de moratória total sobre a dívida externa, chegou-se a um regime de câmbio administrado. O comércio bilateral e intrarregional declinou 50% e, mesmo recuperando-se paulatinamente na década seguinte, não mais voltou a exibir a importância relativa que ele teve durante a primeira década do bloco.

Não obstante, existiu ali, ainda que de maneira involuntária, uma primeira oportunidade para a adoção de mecanismos monetários e cambiais que poderiam ter permitido realizar um dos requisitos do Mercosul para a consecução do seu mercado comum, que é a convergência macroeconômica a partir de políticas harmonizadas nessas áreas. Esse não foi, entretanto, o caminho seguido pelos dois países, muito em função da adoção, pela Argentina, de políticas de corte heterodoxo e de claro sentido protecionista. Desde então, aprofundou-se a divergência entre os dois países, mesmo com a recuperação – nunca completa ou acabada – dos fluxos nominais de comércio.

A bem da verdade, tanto o Brasil quanto a Argentina, tornaram-se mais protecionistas, ao longo da primeira década do novo milênio, mas foi a Argentina quem recorreu a mecanismos claramente em contradição com as normas e procedimentos formalmente em vigor no âmbito do Mercosul, em face da complacência do governo brasileiro, alegadamente em “solidariedade” com a recuperação econômica e o processo de “reindustrialização” do principal parceiro regional. A “paciência estratégica” do Brasil com respeito aos descumprimentos argentinos dos requerimentos do Mercosul serviu apenas para que o país aprofundasse suas medidas discriminatórias contra as exportações brasileiras, em total oposição não apenas às regras do bloco regional, mas também com respeito às normas do sistema multilateral de comércio. O governo brasileiro nunca utilizou-se do recurso aos mecanismos de solução de controvérsias do Mercosul ou do sistema arbitral do Gatt-OMC, apenas solicitando a mesma paciência por parte de suas empresas exportadoras em relação aos descumprimentos argentinos.

2. Os efeitos da crise argentina sobre o Brasil e o Mercosul

O agravamento da crise argentina, na sequência da aceleração dos seus índices de inflação, aprofundamento da perda de competitividade externa e constante recurso a um protecionismo que também prejudica a competitividade setorial de diversas de suas indústrias – somados a outros desequilíbrios monetários, orçamentários, fiscais e cambiais – introduz uma situação de instabilidade no Cone Sul, ao criar novos efeitos negativos no plano dos fluxos comerciais bilaterais e regionais e ao desempenhar, ainda que moderadamente, um efeito dominó sobre os fluxos financeiros e de investimentos para os países vizinhos, com destaque evidente para o caso do Brasil. Mesmo que os observadores externos sejam capazes de identificar as diferenças de situação entre o caso brasileiro – de relativa estabilidade no baixo crescimento – e o caso, bem mais grave, da Argentina – de profunda quebra de confiança na capacidade das autoridades econômicas de estabilizar o cenário macroeconômico –, parece inevitável que algumas consequências advirão para o Brasil da caminhada argentina para a beira do abismo, o que pode aproximá-la do caso infinitamente mais grave da rápida deterioração da situação na Venezuela, outro grande parceiro do Brasil no comércio regional.

O fato, também relevante, que o governo brasileiro demonstre solidariedade, compreensão e tolerância com os desvios e inconsistências macroeconômicas de seus dois principais parceiros na América do Sul – tendo inclusive patrocinado o ingresso, segundo alguns indevido ou até ilegal, do país caribenho no Mercosul – pode contribuir para consolidar a impressão, aos olhos desses observadores, de que o Brasil pode ver com simpatia algumas das medidas heterodoxas adotadas nesses países para fazer frente ao que parece ser uma péssima gestão dos seus assuntos fiscais, monetários e cambiais. Já algumas agências de classificação de risco vêm alertando para certas inconsistências do lado da política macroeconômica brasileira, como também para desvios setoriais registrados no plano das políticas industrial e comercial, algumas das quais já foram objeto de questionamento na OMC.

Assim, mesmo que o aprofundamento da crise cambial e monetária argentina não resulte, necessariamente, num efeito dominó em direção do Brasil, além de suas inevitáveis consequências no plano do comércio bilateral – aparentemente já apontando para novos patamares de declínio (automóveis, manufaturados em geral, energia) – o cenário prospectivo não prenuncia nenhuma melhoria no horizonte previsível. Resta saber o que poderia ser feito para minimizar os efeitos da nítida deterioração do quadro macroeconômico e setorial no país vizinho – e também na Venezuela – sobre o cenário econômico de curto e médio prazo no Brasil. Esses efeitos se exercerão nos planos do comércio, dos fluxos financeiros, cambial e de investimentos.

A redução da demanda argentina por produtos brasileiros de exportação – tanto pelo protecionismo deliberado, como pela indisponibilidade de saldos positivos – não poderá ser compensada facilmente, pois grande parte desse comércio era de fluxos administrados (no caso do acordo automotivo, por exemplo), levando-se ainda em contra que muitos dos países do continente sul-americano também se tornaram grandes clientes da máquina exportadora chinesa em manufaturados (que sempre foi o essencial das exportações regionais brasileiras). Um esforço adicional do governo e dos exportadores pode redirecionar parte do que está sendo perdido, mas, ainda assim, os níveis de preferência existentes ao abrigo dos acordos regionais no âmbito da Aladi talvez não consigam compensar inteiramente o que está sendo agora perdido, o que pode representar um problema grave para muitas empresas brasileiras. Com efeito, mesmo se o Mercosul tornou-se relativamente menos importante para o comércio exterior do Brasil como um todo – que diversificou e aumentou bastante seu comércio com a Ásia e outros países emergentes – o Cone Sul ainda era, e continua sendo, importante no plano microeconômico para dezenas, ou centenas, de empresas da região Sul ou até de outras regiões do Brasil, que não são competitivas ou não se interessam pelos mercados mundiais, concentrando suas vendas no âmbito do Mercosul e de outros vizinhos regionais (que também serão afetados pelo clima de erosão atual da confiança).

Os fluxos financeiros também serão afetados, talvez duplamente, ainda que de modo independente. Com o lento restabelecimento da situação nos Estados Unidos e uma ainda mais lenta minimização dos graves problemas na Europa, pode-se prever um redirecionamento de aplicações, provavelmente acelerada no caso de elevação das taxas de juros nos mercados avançados. Mas deve também se manifestar a mesma “fuga para a qualidade” de investidores institucionais e simples agentes especuladores a partir do agravamento da situação na Argentina e em alguns outros países, o que pode afetar o Brasil, acelerando a desvalorização de sua moeda. Ainda que o Banco Central possa, e deva, intervir nos mercados para corrigir ou minimizar parte dessas tendências, o esforço pode ser modesto para evitar consequências no plano inflacionário e das próprias transações correntes, já bastante abaladas pelo comportamento declinante da balança de comércio. A passagem do patamar de 4% do PIB no déficit de transações correntes pode precipitar certa fuga de capitais (inclusive de nacionais), o que resultaria no aprofundamento dos principais indicadores macroeconômicos em direção ao vermelho.

A morosidade da dinâmica econômica no Brasil também parece reduzir as perspectivas do lado dos investimentos diretos estrangeiros em direção ao Brasil, numa frente que costuma exibir tendências de médio e longo prazo. Mas esse é também um terreno que já foi impacto negativamente antes mesmo do agravamento da crise na Argentina, e que atinge os investimentos brasileiros realizados no país. Não se desconhece, por exemplo, o retraimento já registrado por parte de grandes empresas brasileiras – a Petrobras e a Vale estão entre elas – em função das medidas restritivas que vêm sendo tomadas, desde muito tempo, pelas autoridades federais ou provinciais que atingem os investimentos estrangeiros de modo geral, e os brasileiros em especial. Quando da nacionalização irregular e arbitrária da Repsol, por exemplo, o governo da Espanha montou uma operação defensiva muito eloquente em apoio a seus investidores privados; não se conhecem gestos similares por parte do governo brasileiro, pelo menos não de modo aberto e transparente.

Em quaisquer dos cenários, portanto – e o ambiente na Argentina ainda não se revelou em toda a sua inteireza –, as perspectivas para o Brasil podem ser mais graves do que o anunciado normalmente pelas autoridades econômicas ou políticas. O quadro é tanto mais incerto quanto mais desequilibradas podem ser as respostas argentinas aos desafios do momento, numa conjuntura em que tampouco os responsáveis brasileiros têm sinalizado claramente opções alternativas de política econômica mais eficazes ao que até agora se manifestou sob uma obscura “nova matriz macroeconômica”. Como sempre, metade do esforço, mais até do que os indicadores em si, tem de se apoiar num elemento intangível que se chama de “credibilidade” da (ou confiança na) capacidade das lideranças econômicas (e políticas) de adotarem as medidas corretas para responder aos problemas já detectados.

3. Negociações comerciais internacionais e percepções externas nessa área

As negociações birregionais entre o Mercosul e a União Europeia constituem um dos mais patéticos equívocos da estratégia comercial do bloco dos últimos dez anos. A despeito de terem sido feitas aproximações desde o início do Mercosul por parte da União Europeia – que sempre demonstrou certo paternalismo em relação ao bloco, como se este devesse seguir o seu modelo integracionista – as negociações para um acordo de liberalização comercial (e não de livre comércio) só foram de fato engajadas depois que os Estados Unidos propuseram o seu projeto de uma área de livre comércio hemisférica, a Alca, lançada na Cúpula de Miami de dezembro de 1994 (aliás, aceita pelo então chanceler do presidente Itamar Franco, que veio a ser o mesmo do governo Lula, durante os seus dois mandatos).

Desde antes de assumir o poder, Lula e o PT já tinham caracterizado a proposta da Alca como um projeto, não de integração – o que, estrito senso, ele não era – mas de “anexação”. Governo e partido se empenharam, desde o início, na implosão do projeto americano, do qual o Brasil participava de modo muito relutante, por sinal. De modo explícito, as preferências estavam com as negociações multilaterais da Rodada Doha e com as birregionais com a UE, ingenuamente creditadas de algum mérito superior que não poderia existir no esquema hemisférico. Aqui ocorreu notoriamente um enorme erro de avaliação, o que levou a um equívoco ainda maior no plano estratégico. Os fluxos de comércio do Brasil com o hemisfério sempre tiveram um grande componente de produtos manufaturados, ao passo que o intercâmbio com a zona europeia sempre foi mais caracterizado pelo padrão Norte-Sul de intercâmbio comercial, cujos fluxos eram, aliás, claramente prejudicados pelo subvencionismo e protecionismo europeus na área agrícola. Parecia claro, aos olhos de observadores isentos, e de economistas sensatos, que os interesses do Brasil estariam melhor contemplados se consolidado um acesso garantido ao enorme mercado norte-americano, que aliás tinha outras características do que a abertura de mercados (igualmente difícil no setor agrícola). A Alca, do ponto de vista do Brasil seria basicamente um acordo de investimentos, uma vez que o Brasil passaria a atrair a implantação de empresas americanas interessados nos mercados do Mercosul e da América do Sul.

Parece claro que a implosão da Alca, pelos estrategistas do governo Lula, serviu para diminuir amplamente o entusiasmo, ou a propensão, dos europeus por um acordo com o Mercosul, que para eles serviria, essencialmente, para compensar as esperadas desvantagens que teriam surgido com a eventual constituição da Alca. Eliminada esta possibilidade, de maneira completamente ideológica diga-se de passagem (pela ação combinada de Chávez, Kirchner e Lula, na Cúpula de Mar del Plata, em novembro de 2005), um observador atento, ou minimamente racional, poderia chegar à conclusão de que diminuiria proporcionalmente o entusiasmo europeu pela liberalização comercial com o Mercosul (cuja demanda de acesso agrícola continua a sofrer obstinada resistência de diversos membros da UE). Pois bem, dez anos se passaram sem qualquer perspectiva de progressos nas negociações, a despeito de declarações cosméticas sobre sua importância nas relações das duas regiões entre si.

Chegamos ao momento atual, sem Alca, sem muita esperança do lado da Organização Mundial do Comércio e sem qualquer outro acordo bilateral ou regional de importância (ou mesmo sem muita importância) que tenha sido concluído pelo Mercosul. Alguns dos seus dirigentes – mas não da Argentina, certamente – voltam a depositar grandes esperanças num eventual acordo comercial (de qualquer tipo) com a UE. Seria ele possível, factível, provável? Duvido, mesmo com toda a agitação diplomática que se desenvolve ocasionalmente em torno dele. As razões se devem apenas parcialmente à oposição argentina a um maior grau de liberalização e de abertura de seus próprios mercados na mais que hipotética possibilidade de se chegar a bom termo nesse processo. O fato é que a maior parte dos parceiros, em maior ou menor grau, não estão efetivamente comprometidos com novos esquemas de liberalização, na ausência de poderosas alavancas que poderiam conduzir a um acordo de um tipo qualquer (como a Alca poderia ter sido, por exemplo).

Ainda que a atitude Argentina seja um claro indicador de que não existe, de fato, unidade negocial no âmbito do Mercosul – e isso destrói uma de suas principais características enquanto bloco alegadamente funcional, enquanto união aduaneira – o fato é que não existem prejuízos que possam ser por ela causados ao Brasil que já não tenham sido causados pelas próprias autoridades econômicas brasileiras pela sequência de medidas impensadas, claramente defensivas, quando não abertamente protecionistas, tomadas em defesa de alguns dos seus mais influentes lobbies empresariais – como os da indústria automotiva, por exemplo, aliás todo ele estrangeiro – e de alguns sindicatos de trabalhadores muito ligados à CUT, ao PT e ao próprio Palácio do Planalto. O Brasil vem sendo questionado, na OMC e bilateralmente por alguns grandes parceiros, de recuo nos compromissos de stand-still (neutralização de qualquer nova medida em defesa dos mercados nacionais) e de não recurso ao protecionismo explícito que todos os participantes de uma rodada de negociações assumem quando de seu desenrolar.

A reputação do Brasil enquanto parceiro comercial confiável foi de certo modo arranhada pelas medidas tomadas desde 2009 pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e pela Fazenda, não apenas no âmbito comercial, mas igualmente financeiro e fiscal-tributário. Um exemplo precoce da inversão de prioridades já tinha sido revelado quando da “denúncia” unilateral pelo Brasil do acordo automotivo com o México: enquanto ele produziu saldos favoráveis às empresas brasileiras engajadas no intercâmbio, ele foi plenamente aceito pelo governo brasileiro; bastou haver reversão nos fluxos, que ele se tornou repentinamente negativo e objeto de renegociação forçada. Registre-se, por importante, que a parte mexicana não é, nem nunca foi, em nada responsável pela trajetória aleatória do câmbio brasileiro, influenciado por uma série de outros fatores que não os sucessos ou frustrações do acordo automotivo bilateral.

Agora, a Argentina resolve fazer exatamente o mesmo contra os automóveis brasileiros. Resta saber qual será a atitude do governo brasileiro neste particular. A experiência dos dez ou onze anos passados no trato bilateral do Brasil em relação ao protecionismo e às arbitrariedades comerciais do maior sócio no Mercosul não prenunciam nada de muito diferente do que já ocorreu até aqui. Talvez aqui se aplique o conhecido ditado sobre o feitiço e o feiticeiro. Em resumo, quando se trata da Argentina, um país que conheceu uma trajetória espetacular ao longo da história econômica do século 20 (qualquer que seja o sentido que se dê ao termo espetacular), nunca se corre o risco de ser surpreendido por novas surpresas ainda mais surpreendentes do que as anteriores e conhecidas até aqui. Inacreditáveis argentinos…

Paulo Roberto de Almeida é diplomata, mestre em planejamento econômico pelo Colégio dos Países em Desenvolvimento da Universidade de Estado de Antuérpia, doutor em ciências sociais pela Universidade de Bruxelas. Trabalhou como assessor especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. É autor dos livros: “O Mercosul no contexto regional e internacional” (Aduaneiras, 1993), “O Brasil e o multilateralismo econômico” (Livraria do Advogado, 1999), “Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da diplomacia brasileira (UFRGS, 1998)” e “O moderno príncipe – Maquiavel revisitado” (2007)

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Millenium