O mercado é frequentemente, e muito corretamente, caracterizado como sendo um extraordinário ‘solucionador de problemas’. Quando há regras claras e bem determinadas (como respeito à propriedade privada, liberdade de comércio e império da lei), indivíduos em busca de seus próprios interesses econômicos conseguem coordenar seus planos com os planos econômicos de outros indivíduos de maneira relativamente bem-sucedida, gerando uma ordem geral harmoniosa e dinâmica, na qual todos se beneficiam. E o principal: isso tudo ocorre sem que cada indivíduo esteja ciente — ou sem que seja necessário ele estar ciente — de como tudo acontece. É por isso que os economistas costumam dizer que os mercados são muito mais “sábios” do que uma única pessoa.
Porém, sou da opinião de que os mercados são mais importantes pelos problemas que eles “criam” do que pelos problemas que eles solucionam.
Em 1920, Ludwig von Mises explicou que um determinado indivíduo na sociedade só é capaz de planejar racionalmente — isto é, encontrar e utilizar os meios mais eficientes e menos custosos para se alcançar um determinado fim — se houver um sistema de preços de mercado que possam guiá-lo. Seria melhor, do ponto de vista deste indivíduo, construir uma ponte utilizando molibdênio ou utilizando aço? Ou talvez uma combinação de ambos? Ou será que ele deveria mesmo construir uma ponte em vez de investir num serviço de balsas? Se estas questões já são difíceis o bastante num mundo em que há preços de mercado, elas seriam impossíveis de ser respondidas caso não houvesse preços para o aço, o molibdênio e todos os tipos de insumos utilizados na construção de um determinado tipo de ponte (ou um determinado tipo de serviço de balsa).
É desta maneira que o sistema de preços — preços que surgem da livre transação de propriedade privada num livre mercado — ajuda este indivíduo a solucionar não apenas o problema de como construir uma ponte, mas também, e principalmente, a questão sobre se tal ponte deve ou não ser construída. Com a ajuda dos preços de mercado, este indivíduo torna-se capaz, ao menos em princípio, de estimar quais os custos das várias alternativas a esta ponte. E aquela opção que gerar o maior lucro — aquela cujos benefícios esperados excedem os custos esperados pela maior margem — tenderá a ser também a mais eficiente (isto é, este indivíduo estará obtendo o mais alto retorno para seu investimento).
Aproximadamente 20 anos após o artigo de Mises, Friedrich Hayek explicou como estes preços criados pelo mercado permitem que um indivíduo imperfeitamente informado consiga coordenar seus planos em conjunto com um vasto número de pessoas espalhadas pela economia global sem necessariamente saber como isso está ocorrendo. Se o preço da gasolina sobe, ninguém tem de dizer a este indivíduo para usar menos o seu carro, embora seja exatamente isso o que o aumento da escassez relativa da gasolina (fenômeno esse responsável pelo aumento do preço) esteja impondo.
Tomadas conjuntamente, as análises de Mises e Hayek sobre a economia de mercado aperfeiçoam enormemente a nossa ideia sobre o que Adam Smith, ainda no século XVIII, quis dizer ao se referir à “mão invisível”. Considerando que o processo de coordenação, possibilitado pelos preços de mercado, seja repetido continuamente para todos os bens e serviços produzidos numa economia, fica fácil entender por que vários economistas se mostram impressionados com a capacidade do mercado de “espontaneamente” solucionar problemas.
Este processo de coordenação também joga uma luz sobre como as políticas governamentais — coletivistas ou apenas intervencionistas —, que eliminam ou distorcem os preços do mercado, tendem a tornar o mundo bem mais irregular, incerto e volúvel.
Por mais maravilhosa que a economia de mercado seja em solucionar problemas, de certa forma a verdadeira engenhosidade do processo de mercado está em como ele consegue chamar a atenção das pessoas para os problemas existentes. Para conseguir resolver um problema, você tem antes de estar ciente de que existe um problema. Esta, creio eu, foi a grande constatação que Israel Kirzner, ainda no início da década de 1970, ofereceu para o nosso entendimento do processo de mercado — mais especificamente, que o mercado é um processo de descoberta empreendedorial de erros.
Uma implicação desta constatação é que políticas governamentais que interfiram nos preços do mercado e solapem sua confiabilidade (a qual não pode ser perfeita) inevitavelmente farão com que a descoberta das ineficiências seja profundamente mais difícil e problemática. O solapamento dos preços de mercado é uma medida que obscurece o próprio significado da ineficiência.
A rigor, uma ineficiência existe quando, para uma dada pessoa num dado tempo e num dado local, o custo de uma ação supera seus benefícios. Vimos acima que, para calcular racionalmente custos e benefícios, você necessita da existência de preços para insumos e produtos — no exemplo, para aços e pontes. Logo, quando o governo ataca os direitos de propriedade, quando ele interfere no mercado, quando ele manipula os juros e a oferta monetária (e, com isso, distorce os preços), ele não apenas está fazendo com que seja mais difícil ser eficiente, como também está afetando a própria capacidade empreendedorial de se perceber as ineficiências.
Por exemplo, utilizando as regras da aritmética, é fácil ver que a afirmação 1 + 2 = 4 está errada. Mas o que podemos dizer sobre a afirmação _ + _ = _? Qual a solução deste “problema”? Há alguma solução? No livre mercado, são os preços que preenchem as lacunas; são eles que “criam erros”. Ou seja, são eles que revelam erros que ninguém seria capaz de perceber caso inexistissem preços. E são estes erros que empreendedores alertas irão perceber e corrigir. Se os erros e as ineficiências permanecessem invisíveis, a busca por melhores maneiras de se fazer as coisas jamais ocorreria.
Uma economia sem ineficiências é uma em que o conhecimento é tão perfeito que ninguém comete erros. Ou é uma em que as políticas governamentais conseguiram com total eficácia abolir todas as possibilidades de ineficiência. Num mundo de surpresa e descobrimento, de experimentos e inovações, a primeira opção é impossível; e a segunda, como Mises demonstrou há quase 100 anos, não apenas é impossível como também é intolerável.
Portanto, uma economia ativa e pujante tem de “criar” ineficiências. Várias ineficiências. São as ineficiências que possibilitam maiores eficiências e contínuas inovações. E é exatamente isso o que o processo de mercado faz a todo o momento. Ainda bem!
Sanford Ikeda é professor-associado de economia no Purchase College, da State University of New York, e autor do livro The Dynamics of the Mixed Economy: Toward a Theory of Interventionism
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil